O eu poético e o autor

O eu poético e o autor são diferentes
O eu poético e o autor são diferentes

O assunto que ora se evidencia – o eu poético e o autor –, nos remete a uma importante e recorrente discussão que diz respeito ao eu lírico presente nas criações literárias. Fala-se tanto dele, embora muitas vezes desconheçamos as particularidades que o definem. Assim, com base nessa premissa, propomo-nos a discutir acerca destes aspectos peculiares, de forma a compreendermos a diferença existente entre quem escreve, no caso o autor; e a própria voz que se revela em meio às muitas criações artísticas que compõem o universo literário, o eu poético.   

Para tanto, observemos as palavras de Mário de Andrade, expressas no prefácio do livro “Pauliceia desvairada”:

Quanto sinto a impulsão lírica escrevo sem pensar tudo que meu inconsciente me grita. Penso depois: não só para corrigir, como para justificar o que escrevi.

Com base nessas sábias palavras podemos ter uma noção, mesmo que ainda vaga, de que o poeta não pode ser confundido com o enunciador de um poema, no caso o chamado “eu poético”.  A título de reforçarmos a presente afirmação vejamos o conceito do que vem a ser o eu lírico:   

Voz que expressa suas emoções no poema, um eu poético, simulado, inventado pelo poeta que não pode ser confundido com o próprio poeta. 
Fonte: NICOLA, José de. Painel da literatura em língua portuguesa: teoria e estilos de época do Brasil e Portugal: livro do professor /José de Nicola; colaboração Lorena Mariel Menón. São Paulo: Scipione, 2006.

Aproveitando a oportunidade, analisemos duas importantes criações, uma fazendo referência a Carlos Drummond de Andrade e outra a Fernando Pessoa, poeta português:

Confidência do itabirano

Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil,
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!

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                                     Carlos Drummond de Andrade

LISBON REVISITED (Lisboa Revisitada)

Não: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) –
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-a!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro a técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havermos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja a companhia!

Ó céu azul – o mesmo de minha infância –
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!
[...]

                                                                Álvaro de Campos

Elas, quando analisadas, levantam o seguinte questionamento: haveria um ponto de contato, uma identificação entre os dois poetas e as vozes que se revelam por meio de ambas as artes? Carlos Drummond se assemelha ao eu lírico por ser natural de Itabira; assim como Fernando Pessoa, mesmo em se tratando de um de seus heterônimos (frutos de um poeta que se desdobrou em vários “eus”), no caso, Álvaro de Campos, estaria revelando traços do próprio Fernando Pessoa, tido em “carne e osso”. Devemos, pois, chegar à conclusão de que embora em algumas vezes possa ocorrer um ponto de contato entre essa relação (poeta x eu lírico), há que sempre fazermos tal diferenciação.

Por: Vânia Maria do Nascimento Duarte

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