Revolta dos Malês

A Revolta dos Malês foi a maior revolta urbana de escravizados ocorrida no Brasil. O levante aconteceu em Salvador, na Bahia, durante o Período Regencial.

Pintura retratando escravo sendo punido em um pelourinho, em alusão à Revolta dos Malês.
O principal objetivo da Revolta dos Malês era a liberdade.[1]

A Revolta dos Malês foi uma revolta que ocorreu em 1835, durante o Período Regencial, e contou com a participação de centenas de escravizados muçulmanos, sendo a maior revolta escrava urbana ocorrida no Brasil. Os malês planejaram atacar de surpresa edifícios públicos e quartéis de Salvador, mas as autoridades souberam dos planos e os malês perderam o fator surpresa, levando-os a iniciarem a revolta de forma desorganizada.

Os combates duraram da noite do dia 24 de janeiro até a alvorada do dia 25. Dezenas de malês perderam a vida na revolta e centenas foram julgados e condenados pelas autoridades regenciais. A revolta causou grande medo entre os senhores de escravos de todo o Brasil, levando a um maior controle da população escrava e aprofundando a discussão sobre a abolição no nosso país.

Leia também: Por que o Brasil demorou tanto para decretar o fim da escravidão?

Tópicos deste artigo

Resumo sobre a Revolta dos Malês

  • A Revolta dos Malês foi um levante realizado em Salvador, durante o Período Regencial no Brasil, por escravos muçulmanos que eram chamados de imalês.
  • Os escravos muçulmanos eram proibidos de expressar sua fé no Brasil e eram perseguidos pelas autoridades.
  • A Bahia, na época da revolta, tinha a maior parte da sua população composta por negros e pardos.
  • Durante a revolta, os malês utilizaram roupas brancas e diversos adereços que remetiam ao islamismo.
  • Os malês buscavam tomar o poder em Salvador e fundar um Estado islamizado no Nordeste do Brasil.
  • Dezenas de malês perderam a vida nos combates e centenas foram condenados por participação na revolta.

Videoaula sobre a Revolta dos Malês

O que foi a Revolta dos Malês?

A Revolta dos Malês foi uma revolta regencial ocorrida em Salvador na madrugada do dia 24 para 25 de janeiro de 1835. A maior parte dos participantes da revolta, inclusive seus líderes, era de escravos e libertos muçulmanos, estes eram conhecidos na Bahia como malês, por isso o nome da revolta. Na língua iorubá, a palavra imalê significa “muçulmano”.

A maior parte dos malês era proveniente de duas etnias africanas, os iorubás, chamados na Bahia de nagôs, e os hauçás. Por serem muçulmanos, os malês eram alfabetizados e muitas vezes eram mais instruídos do que seus senhores.

Em Salvador os escravos malês exerciam diversas atividades, e muitos deles eram escravos de ganho, que passavam parte do dia nas ruas vendendo produtos ou serviços. A livre circulação e a alfabetização, que permitia a comunicação escrita entre os malês, favoreceram a organização da revolta.

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Como ocorreu a Revolta dos Malês

Estavam prontos para a revolta cerca de 600 malês, que atacariam simultaneamente diversos locais de Salvador.|1| A revolta estava prevista para se iniciar na manhã do dia 25, mas, na véspera, o governador da Bahia ficou sabendo dos planos dos malês e rapidamente organizou suas tropas para defender a cidade.

Na noite do dia 24, tropas do governo iniciaram patrulhas pelas ruas de Salvador, pegando os malês despreparados para o combate. O primeiro embate envolveu cerca de 60 malês,|2| que entraram em conflito com uma pequena tropa, seguindo na sequência para a Câmara Municipal, onde estava preso um dos líderes dos malês, Pacífico Licutan.

As tropas do governo já estavam na câmara, entrando em combate com os revoltosos e ferindo mortalmente diversos deles. Licutan não foi resgatado, parte dos malês fugiu e alguns foram capturados. Durante a madrugada, diversos embates entre malês e tropas governistas ocorreram, o último deles ocorreu quando um grupo de malês tentou tomar o quartel na região de Água de Meninos, sendo derrotados em combate novamente.

Os malês atacaram pontos estratégicos de Salvador e tentaram, assim, tomar o controle da cidade e de locais estratégicos para iniciar um governo malê. Os malês possuíam poucas armas de fogo, o que foi determinante para a derrota frente às tropas legalistas.

Homem negro de etnia hauçá em texto sobre a Revolta dos Malês.
Um homem hauçá em fotografia de 1901. Os malês eram praticantes da religião islâmica.

Os números variam, dependendo do estudo, mas morreram na revolta aproximadamente 70 malês e 10 militares. Foram encontrados, até hoje, 234 processos contra participantes da Revolta dos Malês no Arquivo Público do Estado da Bahia; deles, 165 eram nagôs e 21, hauçás. As penas aplicadas aos revoltosos foram as mais variadas, como degredo, prisão, chibatadas e pena de morte.|3|

Veja também: Sabinada — rebelião que estabeleceu a independência da Bahia durante quatro meses

Contexto histórico da Revolta dos Malês

Após a Independência do Brasil, em 1822, Dom Pedro I assumiu o poder, convocando uma Assembleia Constituinte; mas, ao perceber que a Constituição que estava sendo produzida valorizava o Poder Legislativo em detrimento ao Executivo, ele invadiu a assembleia com tropas e a fechou, ordenando que os deputados voltassem para suas províncias. Esse fato é conhecido como Noite da Agonia.

Dom Pedro I, ainda, outorgou uma nova Constituição em 25 de março de 1824. Nela ele tinha poderes absolutistas, sobretudo por exercer dois poderes, o Executivo e o Moderador.

Descontentes com o autoritarismo, parte do Nordeste tentou se separar do Brasil, na revolta conhecida como Confederação do Equador, e o movimento foi duramente reprimido por tropas do império do Brasil.

Em 1828, o Brasil perdeu a província Cisplatina, que passou a se chamar Uruguai. No período, dois partidos radicalizaram a população residente no Brasil, o Partido Português, que apoiava Dom Pedro I, e o Partido Brasileiro, que fazia críticas ao imperador.

Em novembro de 1830, um dos principais opositores de Dom Pedro I, Libero Badaró, foi assassinado. O crime recaiu sobre o imperador, o que aumentou o número de descontentes consigo. Todos esses fatores geraram uma grave crise política no país que culminou com a abdicação de Dom Pedro I, em 7 de abril de 1831. Após a abdicação, ele partiu para Portugal, deixando como seu sucessor no Brasil seu filho, Pedro, com apenas cinco anos de idade.

A abdicação levou a uma nova crise política, e o Brasil passou a ser governado por regentes, eleitos pelos poucos brasileiros que podiam votar no período. Esse foi o Período Regencial, nele o poder (centralizado no Rio de Janeiro no Primeiro Reinado) passou a ser descentralizado, com relativa autonomia das províncias.

O Ato Adicional de 1834 criou a Guarda Nacional e as Assembleias Provinciais, o Poder Legislativo das províncias. A descentralização política, o não reconhecimento da autoridade dos regentes em diversas regiões e a péssima qualidade de vida da população levaram a diversas revoltas nesse período, que passaram para a história como Revoltas Regenciais. Foi nesse contexto de descentralização política e do governo regencial que a Revolta dos Malês se iniciou.

Causas da Revolta dos Malês

A primeira causa da revolta foi a escravidão em si e o controle violento realizado pelas autoridades de Salvador. O primeiro objetivo dos malês era a liberdade. Em 1835, 40% da população de Salvador eram escravizados; 38% eram negros e pardos libertos; e apenas 22% da população eram brancos.|5|

Pintura retratando homens negros realizando serviços em texto sobre a Revolta dos Malês.
A maior parte da população da Bahia era composta por negros e pardos quando ocorreu a Revolta dos Malês.

Desde o início do século XIX, diversas revoltas escravas ocorreram em Salvador, o que levou senhores e autoridades a acirrarem o controle sobre a população escrava. A perseguição religiosa sofrida pelos malês foi outra causa importante da revolta. Os malês eram proibidos de realizar seus cultos, de fazer suas cinco orações diárias, de possuírem o Corão, entre diversas outras práticas.

O movimento se iniciou no fim do Ramadã. Alguns historiadores afirmam que diversos senhores proibiram que seus escravos muçulmanos fizessem o jejum no mês sagrado, o que aumentou a insatisfação dos malês.

Um caso que exemplifica a perseguição religiosa ocorreu na fazenda de Abraham Crabtree, em 1835. Ele permitiu que seus escravos construíssem uma pequena mesquita em sua propriedade, onde, aos domingos, os muçulmanos se reuniam. Ao serem informados do fato, as autoridades de Salvador ordenaram que a mesquita fosse derrubada.

Qual era o objetivo da Revolta dos Malês?

Dois objetivos dos malês são consenso entre os historiadores:

  • a abolição da escravidão para todos os escravos malês;
  • a fundação de um país muçulmano onde é hoje a Bahia.

O que não é consenso entre os historiadores é o que aconteceria com a população branca e com os não muçulmanos, livres e escravizados, após a vitória malê. Para alguns historiadores, todos aqueles que não fossem muçulmanos seriam executados ou expulsos da Bahia após a vitória malê.

Líderes da Revolta dos Malês

Manoel Calafate, Luís Sanim e Pacífico Licutan foram os principais líderes da revolta. A casa de Manoel Calafate, segundo as autoridades portuguesas, foi o principal local de encontro para organização do movimento. Foi provavelmente da casa dele que partiu o primeiro grupo que entrou em conflito com as tropas governamentais.

Luís Sanim foi uma espécie de tesoureiro dos malês, sendo um dos responsáveis por angariar os fundos que possibilitariam colocar o plano em prática. Pacífico Licutan era uma liderança entre os malês e estava preso no início da revolta, mas não por ter cometido um crime. Ele seria leiloado pela Coroa para quitar as dívidas do seu senhor. Ao iniciar a revolta, os malês tentaram libertar Licutan, sem sucesso.

A revolta contou, ainda, com uma liderança lendária, Luísa Mahin. Não existem fontes históricas que comprovam a existência de Mahin, que teria sido muito importante na transmissão de informações durante os preparativos da revolta. A única fonte sobre Luísa Mahin e de sua participação na Revolta dos Malês é um depoimento feito por seu filho, Luís Gama.

Fim da Revolta dos Malês

Os últimos grupos de revoltosos foram dominados no início da manhã do dia 25 de janeiro. Ao amanhecer, muitos cadáveres estavam espalhados pelas ruas de Salvador, assim como muitas poças de sangue de pessoas que foram feridas nos combates. Os feridos foram levados para o Hospital de Marinha e o Hospital de Santa Misericórdia, a maior parte dos prisioneiros foi levada para o Forte de São Marcelo.

Ainda no dia 25, tropas do governo invadiram diversas casas na área urbana e rural de Salvador em busca de membros da revolta e de provas que os incriminassem. A ação continuou por quase um mês, e as buscas se estenderam às matas da região, onde alguns malês foram capturados. Ainda em 1835, iniciaram-se os julgamentos dos participantes da revolta, e as penas foram aplicadas a todos eles.

Saiba mais: Revolta de Manoel Congo — outra revolta que resultou na fuga em massa de escravos e na formação de um quilombo

Quais foram as consequências da Revolta dos Malês?

A primeira consequência da Revolta dos Malês foi o aumento do controle da população escrava, sobretudo a dos muçulmanos, na Bahia e em quase todo o território brasileiro. Senhores já temiam que algo semelhante à Revolução de São Domingos pudesse ocorrer no Brasil, e, após a Revolta dos Malês, ficou claro que isso realmente poderia acontecer.

A revolta, ainda, aprofundou a discussão sobre a abolição no Brasil, e muitas pessoas defendiam que era melhor a abolição ser coordenada pelo Estado brasileiro do que feita pelas próprias mãos dos escravos. Em 1850, a primeira medida em direção da abolição foi tomada com a aprovação da Lei Eusébio de Queirós, que proibiu o tráfico de escravos para o Brasil a partir da sua promulgação.

Ainda hoje existem consequências da Revolta dos Malês, uma delas é o embate entre a universidade norte-americana de Harvard e membros do movimento negro e de grupos islamitas da Bahia. A universidade possui o crânio de um participante da revolta.

Não sabemos a identidade dele, mas ele era malê e, durante a revolta, foi atingido por um tiro de mosquete na cabeça, falecendo dias depois em um hospital de Salvador. Sua cabeça foi envida para a universidade para que seu crânio fosse estudado. Na atualidade, diversos movimentos do Brasil exigem que Harvard devolva o crânio para que ele seja sepultado no Brasil.

Créditos da imagem

[1] Wikimedia Commons

Notas

|1|, |2| e |3| SANTOS, André Luís Rodrigues. Revolta dos Malês: Apontamentos sobre o levante dos nagôs islamizados. Revista Eletrônica Discente História.com, Cachoeira, v. 7, n. 14, p. 327-339, 2020. UFBA. Disponível em: https://www3.ufrb.edu.br/seer/index.php/historiacom/article/view/2574

|4| e |5| REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil. Companhia das Letras, São Paulo, 2003.

Fontes

REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil. Companhia das Letras, São Paulo, 2003.

RIBEIRO, Gilvan. Malês: A revolta dos escravizados na Bahia e seu legado. Editora Planeta, São Paulo, 2023.

SANTOS, André Luís Rodrigues. Revolta dos Malês: Apontamentos sobre o levante dos nagôs islamizados. Revista Eletrônica Discente História.com, Cachoeira, v. 7, n. 14, p. 327-339, 2020. UFBA. Disponível em: https://www3.ufrb.edu.br/seer/index.php/historiacom/article/view/2574

Por: Jair Messias Ferreira Junior

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