Insurgência islâmica na Revolta dos Malês (1835)

A Revolta dos Malês foi conduzida por africanos muçulmanos e colocou em risco a ordem escravocrata brasileira do período regencial.

Trabalho de Johann Moritz Rugendas (1802-1858), Castigos Domésticos, representa as situações de vida dos escravos africanos no Brasil
Trabalho de Johann Moritz Rugendas (1802-1858), Castigos Domésticos, representa as situações de vida dos escravos africanos no Brasil

O Período Regencial foi uma época conturbada para a organização do Estado Nacional brasileiro. Revoltas eclodiam nas províncias, opondo-se à ordem social vigente. Em alguns casos, era a elite regional a tentar se emancipar do poder do Governo Central, localizado no Rio de Janeiro. Em outras, eram as camadas populares a se revoltar contra a exploração e todo tipo de opressão que sofriam. Nesse último tipo, enquadrou-se a Revolta dos Malês, que ocorreu na cidade Salvador, em 1835, capital da província da Bahia.

A população da capital baiana era formada predominantemente por negros, escravizados ou já libertos. A dura exploração e opressão a que estavam sujeitos explicaram em certo sentido a participação dos africanos escravizados em inúmeras rebeliões e revoltas que ocorreram em Salvador, ao menos desde a Conjuração Baiana, de 1798.

A experiência coletiva de luta pela liberdade ou mesmo contra os desmandos de seus senhores possivelmente permaneceu como horizonte aos escravos que viveram na cidade no século XIX.

Em Salvador, os malês eram assim denominados para diferenciá-los dos outros grupos de escravos. Apesar de não comporem uma etnia única, sendo formados principalmente pelos nagôs e huaçás, os malês eram os escravos adeptos da religião islâmica e pelo fato de já na África estudarem o Alcorão, sabiam ler e escrever, em árabe.

Esse tipo de qualificação garantia aos malês algumas funções específicas, principalmente como escravos de ganho. Escravo de ganho era o escravo utilizado para realizar serviços urbanos em troca de dinheiro, que era entregue ao senhor. Além disso, conseguiam uma maior mobilidade para transitar pelas cidades.

Mas essa realidade não os retirava da situação de explorados e oprimidos. Tal posição levou os malês a prepararem uma revolta no final de 1834, principalmente depois que uma das festas islâmicas foi dissolvida com violência pelas forças policiais, houve a destruição de uma mesquita e dois mestres muçulmanos acabaram presos.

O plano consistia em realizar assaltos aos prédios públicos das forças policiais e militares da cidade de Salvador. O objetivo era abolir a escravidão e realizar uma africanização da Bahia, eliminando brancos e mulatos que se colocassem contra os seus intentos. A data escolhida foi o dia 25 de janeiro, dia da festa de Nossa Senhora da Guia. Era também um dos últimos dias do Ramadã, mês sagrado para os muçulmanos, em que ocorreria a Revelação corânica. A festa católica ocorreria na região do Bonfim, esvaziando a região central de Salvador, situação que possivelmente iria facilitar a ação.

Os malês não confiavam muito nos demais escravos, por isso a revolta se manteve secreta até à véspera do dia planejado. Porém, mesmo essa cautela não foi suficiente. Duas escravas libertas denunciaram a ação às forças policiais, retirando o elemento surpresa da estratégia pensada.

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A polícia se preparou para abafar a revolta, invadindo inicialmente, durante a madrugada, uma casa onde estavam reunidos cerca de 60 escravos. Ao se verem cercados, os africanos atacaram as forças policiais com espadas, facões e algumas armas de fogo. Outros grupos ao alvorecer do dia atacaram diversos prédios públicos. A cidade foi sitiada. Mas os africanos não conseguiram conter a repressão policial. Destacamentos de cavalaria e tropas armadas atacaram os revoltosos. Cerca de 50 morreram e mais de 500 foram presos. Muitos foram torturados, deportados e punidos, principalmente com castigos físicos, como o açoite.

Apesar de ter sido um fato isolado, a Revolta Malê causou uma profunda preocupação para a população de Salvador e do Brasil. Em uma ordem social escravocrata, em que boa parte dos habitantes do país estava privada de sua liberdade e trabalhando forçadamente, uma rebelião escrava, organizada e dirigida apenas por africanos, criou um forte apreensão por parte da elite senhorial brasileira. O receio era de uma nova revolução escrava, nos moldes da ocorrida no Haiti, em 1792, que libertou o país do domínio francês e aboliu a escravidão. Um evento desse não poderia ter lugar no Brasil.

Esse medo explicou o fato de a repercussão da Revolta dos Malês superar as fronteiras baianas. Em artigo do jornal Astro de Minas, publicado em São João del Rey, Minas Gerais, em 14/03/1835, é possível perceber essa preocupação quando escreveram que “d’aqui em diante sejamos mais vigilantes em prevenir accontecimentos tão desastrados, que nos podem, de hum instante para outro, reduzir à ultima desgraça. Não nos levemos de consideração de que nossos Africanos são estupidos; eles são homens, e por conseguinte tem amor à liberdade e aspirão ao predomínio; se lhes faltão os conhecimentos precisos para dirigir bem as suas forças, não são contudo tão privados de discurso que não se sujeitem àquelle que os póde encaminhar, e não deixar de haver algum, que sendo intelligente, os instrua.”¹

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[1] CAIRUS, José Antônio Teófilo.  Jihad, Cativeiro e Redenção: escravidão, resistência e irmandade, Sudão Central e Bahia (1835). Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002. p. 26. Pode ser encontrado em: Casadasafricas.org.

Aproveite para conferir a nossa videoaula relacionada ao assunto:

Por: Tales Pinto

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