A Igreja e a Ditadura

Dom Evaristo Arns: protesto contra a morte do jornalista Vladmir Herzog durante o regime militar.
Dom Evaristo Arns: protesto contra a morte do jornalista Vladmir Herzog durante o regime militar.
Em vários livros de História percebemos a consolidação de uma determinada visão sobre o catolicismo. A entrada dessa instituição na compreensão do passado se inicia na Idade Média, momento em que o cristianismo romano se tornou uma das mais poderosas e influentes instituições na época. No período seguinte, na Idade Moderna, temos os movimentos protestantes assumindo a missão de denunciar e criticar as concepções e práticas do catolicismo por meio de denúncias morais e divergências interpretativas.

Muitas vezes, isso acaba criando uma equivocada generalização que transforma o catolicismo ou simplesmente “a Igreja” em sinônimo de conservadorismo e opressão. Na verdade, esse tipo de pecha consolidada encobre outros momentos em que vemos essa mesma instituição preocupada em debater e refletir sobre as injustiças e problemas de seu tempo. Para exemplificar esse tipo de experiência, podemos nos remeter ao Brasil na segunda metade do século XX.

Nesse período, os problemas sociais do país eram inúmeros e os projetos desiguais de desenvolvimento sócio-econômico da nação promoveram o envolvimento de padres com questões políticas de seu tempo. A partir de 1952, a Conferência Nacional de Bispos do Brasil teve grande importância nas lutas dos camponeses nordestinos que buscavam por melhores condições de vida. Muitas das vezes, apoiaram a formação de sindicatos rurais contrários à estrutura latifundiária que imperava no país.

Com o passar do tempo, vários salões paroquiais se tornaram espaços de discussão política, o que impelia muitos trabalhadores e pequenos agricultores a se sentirem acolhidos pela Igreja. Muitas vezes, esses clérigos eram tomados por sua rebuscada formação teológica e filosófica para participarem ativamente dessas discussões de natureza política. No entanto, essa experiência historicamente vivida foi interpretada de diferentes formas.

Alguns historiadores acreditam que essa participação tinha como objetivo fundamental afastar essas organizações políticas das influências do ideário comunista. Em contrapartida, outro grupo de estudiosos, levanta a possibilidade de que os padres, mesmo sendo pertencentes a uma instituição declaradamente anticomunista, não conseguiam se mostrar alheios aos problemas sociais vividos pelos seus fiéis. Seja como for, o engajamento destes cristãos marcou esse delicado período de nossa história.

Enquanto algumas publicações católicas amedrontavam as elites com seu claro apoio à causa camponesa e reforma agrária, os clérigos também se aproximavam de outro importante agente social dessa época. Na década de 1950, a Igreja se aproximou do movimento estudantil por meio da criação da Juventude Universitária Católica (JUC) para empreender outras discussões de natureza política. Desse movimento surgiu a Ação Popular, grupo que na década de 1960 defendia a mobilização dos trabalhadores.

Entre outras figuras ilustres que participaram da Ação Popular, podemos destacar os nomes do político José Serra e do sociólogo Betinho. Com a instalação do regime militar, a atuação desses movimentos políticos cristãos começou a sofrer a perseguição das autoridades e de clérigos de orientação mais conservadora. Um dos episódios que marcou essa disputa aconteceu quando o bispo dom Helder Câmara foi afastado da arquidiocese do Rio de Janeiro.
Com a repressão instalada, a capacidade de atuação dos padres progressistas – que a essa altura já eram erroneamente chamados de comunistas – teve um espaço de atuação cada vez menor. Ao mesmo tempo, o fortalecimento das igrejas pentecostais e neopentecostais – com seu apelo para a prosperidade individual – acabaram restringindo as possibilidades de mobilização política por meio das instituições religiosas. Dessa forma, a atuação política da Igreja se articulou em diferentes atividades.

Parte dos religiosos teve envolvimento direto com os movimentos contra a ditadura e as guerrilhas urbanas que tentavam tomar o poder. Com isso, vários padres foram presos e torturados sob a acusação de acobertarem comunistas ou terem envolvimento com suas atividades. Paralelamente, outros membros da Igreja atuavam de maneira discreta com o intuito de negociar as prioridades sociais do projeto desenvolvimentista dos militares, nessa ala podemos destacar os esforços do intelectual católico Candido Mendes.

No entanto, durante o regime, os clérigos que tiveram maior notoriedade foram aqueles que denunciaram as atrocidades e crimes cometidos pelos militares da temida “linha dura”. Um dos atos de maior repercussão dessa época aconteceu em Ribeirão Preto, quando dom Felício da Cunha excomungou dois delegados envolvidos com a tortura de madre Maurina Borges, acusada pelo regime de colaborar com as ações de guerrilheiros urbanos.

Em 1975, o caso de assassinato do jornalista Vladmir Herzog serviu de espaço para que líderes católicos criticassem a ditadura. Depois de tomar conhecimento da absurda versão oficial dada pelas autoridades – que disseram que o jornalista se matou enforcado – dom Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo, organizou um grande ato ecumênico em homenagem ao jornalista. Com isso, as relações entre alguns importantes clérigos católicos e o Regime Militar não eram tão harmoniosas.

Com o fim da ditadura no Brasil, alguns desses membros da Igreja ainda lutaram por justiça social e na denúncia aos atos de abuso do Estado. Apesar de não serem vistos como agentes diretos na distensão política da ditadura no Brasil, esses clérigos romperam com as generalizações que articularam preconceituosamente a Igreja às posições políticas mais conservadoras. De fato, tiveram um papel que não pode ser ignorado em favor de um julgamento histórico errôneo.
Por: Rainer Sousa

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