“Quando escrevo, tenho que acomodar as nossas várias facetas, a ponto que não tenha que matar uma parte dentro de mim. É aceitar que somos uma existência composta e escrever é mais desfazer do que fazer. Afinal, somos muitos e ao mesmo tempo, temos uma singularidade. Somos únicos como indivíduo.”
A frase acima foi dita por Mia Couto, uma das mais representativas vozes da literatura contemporânea. O moçambicano que nasceu na cidade da Beira, no dia 5 de julho de 1955, é internacionalmente reconhecido e tem levado a literatura em língua portuguesa para diversos lugares do mundo. Escritor de verso e prosa, hábil inventor de palavras, tem em Guimarães Rosa uma de suas maiores influências, transportando para a escrita traços da oralidade dos falares de seu povo.
“Eu nasci para estar calado. Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez. Quando me viam, parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhado, de alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que se fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios.”
(No livro Antes de nascer o mundo)
Mia Couto, na verdade, é Antônio Emílio Leite Couto. O pseudônimo curioso tem um porquê: apaixonado por gatos desde pequeno, pediu aos pais que assim o chamassem — e assim seria reconhecido em todo o mundo. Além de escritor, é também jornalista e biólogo. A biologia ainda hoje é uma de suas maiores paixões, pois além de dedicar-se à literatura, é também diretor de uma empresa de consultoria ambiental que ajudou a fundar ainda nos anos 1980, quando estudar os impactos ambientais causados pelo homem não era tão comum. Mia afirma que, assim como a literatura, a biologia não é uma profissão, mas sim uma paixão.
“O que mais dói na miséria é a ignorância que ela tem de si mesma.
Confrontados com a ausência de tudo, os homens abstém-se do sonho,
desarmando-se do desejo de serem outros.”
(No livro Vozes Anoitecidas)
Mia Couto já é considerado um dos maiores escritores da literatura moçambicana, sendo hoje, indiscutivelmente, o seu maior representante, tendo sua obra traduzida para vários idiomas. No Brasil, seus livros vêm despertando cada vez mais o interesse do público brasileiro, rompendo assim barreiras culturais, muito embora estejamos ligados pelo mesmo idioma. Para que você conheça um pouco mais sobre o escritor, o Alunos Online escolheu alguns poemas para você conhecer toda a poesia de Mia Couto. Boa leitura!
Para Ti
Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo
Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre
Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida.
Mia Couto, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"
Pergunta-me
Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue
Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos
Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente
Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer
Mia Couto, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"
Horário do Fim
morre-se nada
quando chega a vez
é só um solavanco
na estrada por onde já não vamos
morre-se tudo
quando não é o justo momento
e não é nunca
esse momento
Mia Couto, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"
Fui Sabendo de Mim
Fui sabendo de mim
por aquilo que perdia
pedaços que saíram de mim
com o mistério de serem poucos
e valerem só quando os perdia
fui ficando
por umbrais
aquém do passo
que nunca ousei
eu vi
a árvore morta
e soube que mentia
Mia Couto, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"
*A imagem que ilustra o artigo foi feita a partir de capas de livros do escritor publicados pela editora Companhia das Letras.