Realidade histórica na Idade Média

A realidade histórica na Idade Média era interpretada a partir do advento da pessoa de Cristo, isto é, todos os acontecimentos orbitavam em torno de sua figura.

Na imagem, Dante Alighieri. A obra A Comédia desse autor é um exemplo de como os intelectuais da Idade Média percebiam o desenrolar da História
Na imagem, Dante Alighieri. A obra A Comédia desse autor é um exemplo de como os intelectuais da Idade Média percebiam o desenrolar da História

Quando pensamos em modos de interpretação e análise dos fatos históricos, logo nos vêm à mente os métodos que os historiadores desenvolveram desde o século XIX e, junto deles, uma desconfiança de que a “realidade histórica” nunca foi suficientemente exata. Ninguém duvida disso. Entretanto, as interpretações sobre a realidade histórica nem sempre se orientaram por critérios “científicos”, tais como os conhecemos hoje. Na Idade Média, a confluência entre a tradição judaico-cristã e a tradição clássica, greco-romana, produziu um modo muito particular de se interpretar a realidade histórica.

Sabe-se que o judaísmo é uma religião essencialmente histórica, no sentido de que ressalta em toda a trajetória de seu desenvolvimento os acontecimentos históricos que se desenrolaram em regiões como o Oriente Médio e o Norte da África. Já as culturas clássicas, grega e romana, possuíam uma visão cíclica dos acontecimentos, que eram vistos como manifestações recorrentes de um “eterno retorno”. O advento do cristianismo no seio do judaísmo e sua consequente expansão pela Europa acabaram por mesclar essas duas visões da história e produzir uma perspectiva absolutamente nova.

A essa perspectiva o estudioso alemão Erich Auerbach deu o nome de interpretação figural. De acordo com Auerbach, na Antiguidade Tardia e na Idade Média, a realidade histórica era interpretada à luz do advento de Cristo, isto é, Cristo é figura (uma prefiguração) de todos os acontecimentos passados e de todos que ainda estão por vir. Nas palavras do próprio Auerbach escritas em seu estudo de 1939, intitulado “Figura”: “A interpretação figural estabelece uma conexão entre dois acontecimentos ou duas pessoas, em que o primeiro significa não apenas a si mesmo mas também ao segundo, enquanto o segundo abrange ou preenche o primeiro”. [1]

Desse modo, toda a arquitetura literária e histórica do Antigo Testamento estaria em relação com a realidade das ações de Cristo relatadas pelos Evangelhos. Um exemplo é a cena do sacrifício de Isaque por seu pai, Abraão. No momento em que Abraão está prestes a obedecer a ordem de Deus de imolar seu filho primogênito, um anjo desce dos céus com um cordeiro para substituir Isaque. Esse cordeiro era encarado pelos intérpretes medievais como uma prefiguração ou uma anunciação de Cristo. Por isso, a referência canônica a Cristo como o “cordeiro de Deus”.

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De forma semelhante, os acontecimentos futuros estariam todos prefigurados, tanto nas palavras proferidas por Cristo em suas parábolas quanto em livros como “O Apocalipse”, de João. Essa perspectiva sobre a realidade histórica pode ser observada em grandes intelectuais da Idade Média, como Santo Agostinho e Dante Alighieri. Esse último teve, segundo Auerbach, uma compreensão total do que seria a interpretação figural. Sua obra Comédia, ou a Divina Comédia, como também é conhecida, que é dividida em “Inferno”, “Purgatório” e “Paraíso”, possui um bem acabado sistema que estabelece conexões entre a cultura cristã e a cultura pagã. Por meio dessa conexão, intuía-se a realidade dos fatos.

Em outra obra, intitulada “Mimesis, A representação da realidade na Literatura Ocidental”, Auerbach explicita melhor essa conexão apontada por Dante, que é uma síntese do modo medieval de perceber a realidade histórica:

Para a visão mencionada, um acontecimento terreno significa, sem prejuízo da sua força real concreta aqui e agora, não somente a si próprio, mas também um outro acontecimento, que repete preanunciadora ou confirmativamente; e a conexão entre os acontecimentos não é vista preponderantemente como desenvolvimento temporal ou causal, mas como unidade dentro do plano divino, cujos membros e reflexos são todos os acontecimentos; a sua mútua e imediata conexão terrena é de menor importância e o conhecimento da mesma é, por vezes, totalmente irrelevante para a sua interpretação. [2]

NOTAS

[1] AUERBACH, Erich. Figura. São Paulo: Ática, 1997. p.46.

[2] AUERBACH, Erich. Mimesis: A representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2001. p.501.

Por: Cláudio Fernandes

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